Felipe Ariés
Resgatar
os antecedentes históricos da infância é dar voz a diferentes documentos hoje
pesquisados e que em determinados períodos testemunharam o papel da criança na
sociedade. Reis, padres, professores, pais, mães, vizinhos, gente rica, gente
pobre são porta-vozes da construção da infância no passado e continuam a ser no
presente. Ou seja, a concepção de criança é vivida e apreendida a partir das
construções feitas pelos adultos, nas quais, muitas vezes, a criança não pode
discursar, defender-se ou falar sobre si mesma. Se pudéssemos dar voz às
crianças que estão nas casas, ruas, instituições, buscando a construção de sua
própria história, é possível que elas nos relatem situações que envolvem
sentimentos e sensações diferentes da perspectiva do adulto. Sabemos que a história
da criança é registrada a partir do olhar dos adultos, pois a criança não pode
registrar sua própria história. Se fosse o caso de darmos voz a essas
crianças, certamente ouviríamos histórias de crianças relatando momentos de
alegria, encontrados no amor da família, no direito respeitado, nos espaços
para brincadeiras, enfim, nos encantos de sua vida, a partir da vivência de
situações agradáveis e felizes. Por outro lado, ouviríamos, também, histórias
de incompreensões sofridas, tristezas, atos de injustiça, violência física e
moral, desamparo, enfim, os desencantos com a vida a que um grupo
grande de crianças está exposto. Diante disso, temos uma indicação de que a
infância não acontece da mesma forma para todas as crianças e as histórias se
diversificam a cada experiência. A visão sobre a infância, atualmente, como um
período específico pelo qual todos passam é uma construção definida no momento
presente. A questão de que todos os indivíduos nascem bebês e serão crianças
até um determinado período, independente da condição vivida, é inegável,
entretanto, tal premissa nem sempre foi percebida dessa maneira e por diversos
períodos se questionou qual era o tempo da infância e quem era a criança. O
pesquisador francês Philippe Ariès, em sua obra História Social da Criança e da
Família, publicada em 1960, vai apontar que o conceito ou a idéia que se tem da
infância foi sendo historicamente construído e que a criança, por muito tempo,
não foi
vista como um ser em desenvolvimento, com características e necessidades
próprias, e sim como um adulto em miniatura. Nesse sentido, a história da
infância surge como possibilidade para muitas reflexões sobre a forma como
entendemos e nos relacionamos atualmente com a criança. Assim, gostaríamos
de discutir a respeito da construção do conceito de infância a partir de duas
perspectivas: a de Philippe Ariès, de que o sentimento da infância teria
surgido apenas na Modernidade, e dos apontamentos teóricos de Moysés Kuhlmann
Jr., Jacques Gélis, Daniele Alexandre-Bidón e Pierre Riché, que, em suas
pesquisas, indicam a presença de uma preocupação com as crianças em períodos
anteriores, como a Idade Média.
ARIÈS
é considerado o precursor da história da infância, pois
foi através de estudos realizados por ele com variadas fontes, como a
iconografia religiosa e leiga, diários de família, dossiês familiares, cartas,
registros de batismo e inscrições em túmulos, que surgem os primeiros trabalhos
na área de história, apontando para o lugar e a representação da criança na
sociedade dos séculos XII ao XVII. Baseando-se na história das mentalidades2,
ARIÈS (1981, p. 26) afirma:
(...)
é sempre, quer ou não, uma história comparativa e regressiva. Partimos
necessariamente do que sabemos sobre o comportamento do homem de hoje, como de
um modelo ao qual comparamos os dados do passado . com, a condição
de,
a seguir, considerar o modelo novo, construído com o auxílio dos dados do
passado, como uma segunda origem, e descer novamente até o presente,
modificando a imagem ingênua que tínhamos no início.
A
história da criança contada por Philippe Áries
No
período de grandes transformações históricas, no caso, do século XII ao XVII,
foco de localização de sua pesquisa, a infância tomou diferentes conotações
dentro do imaginário do homem em todos os aspectos sociais, culturais,
políticos e econômicos, de acordo com cada período histórico. A criança
seria vista como substituível, como ser produtivo que tinha uma função
utilitária para a sociedade, pois a partir dos sete anos de idade era inserida
na vida adulta e tornava-se útil na economia familiar, realizando tarefas,
imitando seus pais e suas mães, acompanhado-os em seus ofícios, cumprindo,
assim, seu papel perante a coletividade. Com relação às idades da vida
humana, a pesquisa de ARIÈS aponta que a forma de representar a cronologia
humana passou por várias mudanças, indicando diferentes formas de representar
esses períodos. Tais representações utilizariam principalmente os elementos da
natureza, estudo dos astros, aspectos das crenças populares, fenômenos naturais
e sobrenaturais, os quais faziam parte de um contexto governado pelas leis da
teologia, enfatizando uma visão mística. Dessa forma, as representações da idade
do homem pareciam abstratas, além disso, muitos morriam antes de percorrer
todos os ciclos da vida. No caso da infância propriamente dita, o autor,
partindo de relatos e textos dos século XII ao XVIII, demonstra que as pessoas
definiam a idade da criança como .... a primeira idade é a infância que planta
os dentes, e essa idade começa quando nasce e dura até os sete anos, e nessa
idade aquilo que nasce é chamado de enfant (criança), que quer dizer não
falante, pois nessa idade a pessoa não pode falar bem nem formar perfeitamente
suas palavras.... (ARIÉS, 1981, p. 36). Nessa perspectiva, a fase da infância
seria caracterizada pela ausência da fala e de comportamentos esperados,
considerados como manifestações .irracionais.. A questão da ausência da racionalidade
também é apontada por PLATÃO, SANTO AGOSTINHO e DESCARTES (GANEBIN, 1997). Nesse
sentido, a infância se contrapõe à vida adulta, pois os comportamentos
considerados racionais, ou providos da razão, seriam encontrados apenas no
indivíduo adulto, identificando, assim, o adulto como o homem que pensa,
raciocina e age, com capacidade para alterar o mundo que o cerca; tal
capacidade não seria possível às crianças. Observa-se que a passagem da vida
infantil para a vida adulta seria uma condição a ser superada: .... a passagem
da criança pela família e pela sociedade era muito breve e muito insignificante
para que tivesse tempo ou razão de forçar a memória e tocar a sensibilidade....
(ARIÉS, 1981, p. 10). A infância nesse contexto seria comparada à velhice, pois
se, de um lado, temos a infância constituída pela falta de razão, por outro, teríamos
a velhice marcada pela senilidade .... porque as pessoas velhas já não têm os sentidos tão bons como já tiveram, e caducam
em sua velhice (...) o velho está sempre tossindo, escarrando e sujando....
(ARIÈS, 1981, p. 37). As demais idades, no caso, a juventude e a vida adulta,
caracterizar-se-iam pela sua força, virilidade e principalmente pelas funções
produtivas dentro da vida social e coletiva. Entende-se que foi uma época voltada
ao poder da juventude. Considerando essa questão, percebemos que, ainda hoje, na
nossa sociedade, es a situação é recorrente, à medida que há uma ênfase na
valorização do indivíduo produtivo, excluindo-se crianças e idosos de diversos
setores e espaços sociais. Assim, a história da criança contada por ARIÈS,
destaca que as crianças foram tratadas como adultos em miniatura: na sua
maneira de vestir-se, na participação ativa em reuniões, festas e danças. Os
adultos se relacionavam com as crianças sem discriminações, falavam
vulgaridades, realizavam brincadeiras grosseiras, todos os tipos de assuntos
eram discutidos na sua frente, inclusive a participação em jogos sexuais. Isto ocorria
porque não acreditavam na possibilidade da existência de uma inocência pueril, ou
na diferença de características entre adultos e crianças: .... no mundo das
fórmulas românticas, e expressão particular, e sim homens de tamanho
reduzido.... (ARIÈS, 1981, p. 51). Dessa forma, as crianças eram submetidas e
preparadas para suas funções dentro da organização social. O desenvolvimento
das suas capacidades se dá a partir das relações que mantêm com os mais velhos.
Portanto, percebe-se uma distância da idade adulta e da infância em perspectiva
cronológica e de desenvolvimento biológico, pois a infância é retratada pelas
afinidades que o adulto estabelece com a criança, ou seja, tudo era permitido,
realizado e discutido na sua presença. O autor destaca, ainda, que foram
séculos de altos índices de mortalidade e de práticas de infanticídio. As
crianças eram jogadas fora e substituídas por outras sem sentimentos, na
intenção de conseguir um espécime melhor, mais saudável, mais forte que correspondesse
às expectativas dos pais e de uma sociedade que estava organizada em torno
dessa perspectiva utilitária da infância. O sentimento de amor materno não
existia, segundo o autor, como nessa
passagem, é possível apreender tal idéia: ....uma vizinha, mulher de um
relator, tranqüilizar assim uma mulher inquieta, mãe de cinco pestes, e que
acabara de dar à luz:
Antes
que eles te possam causar muitos problemas, tu terás perdido a metade, e quem sabe
todos..... (ARIÈS, 1981, p. 56). Assim, as crianças sadias eram mantidas por
questões de necessidade, mas a mortalidade também era algo aceito com bastante
naturalidade. Outra característica da época era entregar a criança para que
outra família a educasse. O retorno para casa se dava aos sete anos, se
sobrevivesse. Nesta idade, estaria apta para ser inserida na vida da família e
no trabalho. Nesse contexto, as mudanças com relação ao cuidado com a criança,
só vêm ocorrer mais tarde, no século XVII, com a interferência dos poderes
públicos e com a preocupação da Igreja em não aceitar passivamente o
infanticídio, antes secretamente tolerado. Preservar e cuidar das crianças
seria um trabalho realizado exclusivamente pelas mulheres, no caso, as amas e
parteiras, que agiriam como protetoras dos bebês, criando uma nova concepção
sobre a manutenção da vida infantil, ....como se a consciência comum só então
descobrisse que a alma da criança também era imortal. É certo que essa importância
dada à personalidade da criança se ligava a uma cristianização mais profunda dos
costumes.... (ARIÈS, 1981, p. 61). Dessa forma, surgiram medidas para salvar as
crianças. As condições de higiene foram melhoradas e a preocupação com a saúde
das crianças fez com que os pais não aceitassem perdê-las com naturalidade. No
século XIV, devido ao grande movimento da religiosidade cristã, surge a criança
mística ou criança anjo; ....essa imagem da criança associada ao Menino Jesus
ou Virgem Maria, causa consternação, ternura nas pessoas.. (OLIVEIRA, 1999, p.
22). A representação da criança mística, aos poucos, vai se transformando,
assim como as relações familiares. A mudança cultural, influenciada por todas
as transformações sociais, políticas e econômicas que a sociedade vem sofrendo,
aponta para mudanças no interior da família e das relações estabelecidas entre
pais e filhos. A criança passa a ser educada pela própria família, o que fez
com que se despertasse um novo sentimento por ela. ARIÈS caracteriza esse
momento como o surgimento do sentimento de infância, que será constituído por
dois momentos, chamados por ele de paparicação e apego.
A
paparicação seria um sentimento despertado pela beleza, ingenuidade e graciosidade
da criança. E isto fez com que os adultos se aproximassem cada vez mais dos
filhos. Assim, os gracejos das crianças eram mostrados a outros adultos,
fazendo da criança uma espécie de distração, tornando-se bichinhos de
estimação., como cita ARIÈS (1981, p. 68): ....ela fala de um modo engraçado: e
titota, tetita y totata..... e (..) .eu a amo muito. (...) ela faz cem pequenas
coisinhas: faz carinhos, bate, faz o sinal da cruz, pede desculpas, faz reverência,
beija a mão, sacode os ombros, dança, agrada, segura o queixo: enfim, ela é
bonita em tudo o que faz. Distraio-me com ela horas a fio.....
Por
essa necessidade de manter uma pessoa provida de tanta beleza e graça, surgem
medidas para salvá-la e garantir sua sobrevivência. As condições de higiene
foram melhoradas e a preocupação com a saúde das crianças fez com os pais não
aceitassem perder seus filhos com naturalidade e, os que perdiam, aceitavam
como sendo a vontade de Deus, segundo a orientação religiosa da época. Este
sentimento, despertado primeiramente nas mulheres, não era compartilhado por
todas as pessoas; algumas ficavam irritadas com a nova forma de tratar as
crianças. ARIÈS cita, em suas referências, a hostilidade de MONTAIGNE com o
novo comportamento adotado: ....não posso conceber essa paixão que faz com as pessoas
beijem as crianças recém-nascidas, que não têm ainda movimento na alma, nem forma
reconhecível no corpo pela qual se possam tornar amáveis, e nunca permiti de
boa vontade que elas fossem alimentadas na minha frente.... (MONTAIGNE , apud,
ARIÈS, 1981, p. 159).
O
sentimento de apego surge a partir do século XVII, como uma manifestação da
sociedade contra a paparicação da criança, e propõe separá-la do adulto para
educá-la nos costumes e na disciplina, dentro de uma visão mais racional.
Assim,
foi dentro desse contexto moral que a educação das crianças foi inspirada,
através do posicionamento de moralistas e educadores e, principalmente, com o
surgimento da família nuclear gerada dentro dos padrões da cúria: o modelo de
família conservadora, símbolo da continuidade parental e patriarcal que marca a
relação pai, mãe e criança. A preocupação da família com a
educação da criança fiz com que mudanças ocorressem e os pais começassem,
então, a encarregar-se de seus filhos. Conseqüentemente, houve a necessidade da
imposição de regras e normas na nova educação e a formação de uma criança
melhor doutrinada atendendo à nova sociedade que emergia. Tal concepção de
indivíduo que aparece faz com que a criança seja alvo do controle familiar ou
do grupo social em que ela está inserida.
Com
o surgimento desse novo homem, moderno, aparecem também as primeiras
instituições educacionais, permitindo a concepção de que os adultos .compreenderam
a particularidade da infância e a importância tanto moral como social e metódica
das crianças em instituições especiais, adaptadas a essas finalidades....
(ARIÈS, 1981, p. 193).
Com
a evolução nas relações sociais que se estabelecem na Idade Moderna, a criança
passa a ter um papel central nas preocupações da família e da sociedade. A nova
percepção e organização social fizeram com que os laços entre adultos e
crianças, pais e filhos, fossem fortalecidos. A partir deste momento, a criança
começa a ser vista como indivíduo social, dentro da coletividade, e a família
tem grande preocupação com sua saúde e sua educação. Tais elementos são fatores
imprescindíveis para a mudança de toda a relação social.
Um
olhar diferente sobre a infância de Áries
Não
podemos negar a contribuição de Phillipe ARIÈS à história da criança e a
indicação de que ela só aparece na Idade Moderna, no entanto, contrapondo-se a
essa proposição, Moysés KUHLMANN JR., em sua obra Infância e Educação Infantil:
uma abordagem histórica, referenciada por Pierre RICHÉ e Daniele ALEXANDRE BIDON,
além de Jacques GÉLIS, aponta novas re-interpretações em suas pesquisas procurando
a infância em períodos anteriores. Esses autores, dando voz a diferentes
documentos históricos, consideram que a percepção da infância pelos adultos
existia em idades mais remotas, ou seja, havia a preocupação com a
sobrevivência da criança, com a sua educação, sua religiosidade, os cuidados
com o seu corpo, com sua alimentação, enfim, com uma época de aprendizagens,
com brinquedos, roupas e construção de móveis e objetos apropriados à criança. Esse
cruzamento de olhares nos leva a pensar em outras perspectivas sobre a
concepção da infância. KUHLMANN JR. (1998, p. 22) nos dá pistas para compreendermos
o período quando ele diz: .O sentimento de infância não seria inexistente em
tempos antigos ou na Idade Média, como estudos posteriores mostraram. Em livros
escritos pelos historiadores Pierre Riché e Daniele Alexandre-Bidon (...),
fartamente ilustrados com pinturas e objetos, arrolam-se os mais variados
testemunhos da existência de um sentimento da especificidade da infância
naquela época.. KUHLMANN JR. salienta que a construção da infância de ARIÈS é
uma percepção generalizante e linear, pois sua pesquisa fundamenta-se em fontes
de famílias abastadas e o historiador francês pressupõe que o sentimento do
amor pelas crianças surge primeiramente no interior dessas famílias,
principalmente a partir da particularização da educação de filhos homens.
Ficaram à margem as fontes históricas populares, com poucos registros da sua
infância, devido à precariedade das condições econômicas. Mesmo em abordagens
que tomam a infância em sua referência etimológica, como os sem-voz, sugerindo
uma certa identidade com as perspectivas da história vista de baixo, a história
dos vencidos, essa visão monolítica permanece e mantém um preconceito em
relação às classes subalternas, desconsiderando a sua presença interior nas
relações sociais. Embora reconhecendo o papel preponderante que os setores
dominantes exercem sobre a vida social, as fontes disponíveis, como, por
exemplo, o diário de Luís XIII, utilizado por Ariès, geralmente favorecem a
interpretação de que essas camadas sociais teriam monopolizado a condução do
processo de promoção do respeito à criança. (KUHLMANN JR, 1998, p. 24).
Neste
sentindo, percebe-se que a história apontada por ARIÈS é uma história de
meninos ricos, confirmando uma educação diferenciada às duas infâncias, da
criança rica para a criança pobre. Por um lado, temos a criança rica,
evidenciada principalmente na particularização da educação de meninos,
enclausurados num espaço íntimo com sua família, ocupados com aprendizagens
para a vida social, com regras de etiqueta e de moralidade que deveriam saber e
seguir, bem como a aprendizagem de música, dança, leitura e a utilização de
roupas adequadas às características da criança. Temos também os chamados
.precoces. ou .prodígios. por uma elite que acelerava o desenvolvimento de seus
filhos homens, para fazer demonstrações de seus dotes. Por outro lado, é
possível inferir a existência da infância pobre percebida nas crianças do povo,
filhos de camponeses e artesões, vivendo em espaços compartilhados com todos,
participando das conversas com os adultos, nas praças com seus folguedos infantis,
nas reuniões noturnas, sem modos e talvez vestidas como adultos. Esta caracterização
das crianças do povo como indivíduos sem modos, livres, com comportamentos
inadequados, deve-se ao fato de que o conceito de pudor e vergonha são valores
que foram sendo construídos a partir das relações das famílias abastadas, sendo
uma relação que se constrói verticalmente das classes altas para as baixas.
Todavia, isso não quer dizer que o sentimento ou a educação, mesmo informal,
das crianças pobres não existisse. Portanto, as aprendizagens ocorriam nas
famílias de todas as crianças, pobres e ricas, e a cultura dessas duas
infâncias tem como parâmetro os laços com o mundo dos adultos, possibilitado,
principalmente, pela liberdade em espaços compartilhados; a criança presenciava
experiências que resultavam dessas relações: aprendia convivendo. Nessa ótica
da importância das relações familiares com a criança, Jacques GÉLIS vai
destacar que tais relações eram muito importantes, pois todos compartilhavam em
tudo, ou seja, um dependia do outro: .nesse imaginário da vida e do corpo, a
criança era considerada um rebento do tronco comunitário, uma parte do grande
corpo coletivo que, pelo engaste das gerações, transcendia o tempo. Assim,
pertencia à linhagem tanto quanto aos pais. Neste sentido, era uma criança pública
(GÉLIS, 1991, p. 313). Diante disso, observa-se que a presença da criança no
seio familiar era muito significativa, pois ela marca a sucessão parental e,
sendo ela considerada pública, evidencia-se a preocupação que a família tinha
em garantir a sobrevivência da criança e, principalmente, sua educação, pois,
influenciada pelos familiares ou vizinhos, a infância era uma época de aprendizagens: .as
aprendizagens da infância e da adolescência deviam, pois, ao mesmo tempo
fortalecer o corpo, aguçar os sentidos, habilitar o indivíduo a superar os
revezes da sorte e, principalmente, a transmitir também a vida, a fim de
assegurar a continuidade da família. (GÉLIS, 1991, p. 315). Diante deste
contexto, o pai e a mãe seriam os responsáveis por esta primeira educação,
diferente do que ARIÈS destaca em sua pesquisa a família e principalmente a mãe não
possuiriam a sensibilidade ou o apego pelos seus filhos.
Assim,
não podemos generalizar afirmando que toda a sociedade medieval pais, mães, enfim todos que habitavam com as
crianças visse as crianças apenas como servidora
e sujeito produtivo, numa perspectiva utilitária da infância, nem que todo o sentimento,
no caso, o amor, envolvido nestas relações ficasse alheio a elas ou não
existisse. Quanto a isso, o autor vai dizer que .a indiferença medieval pela
criança é uma fábula e, no século XVI, como vimos, os pais se preocupavam com a
saúde e a cura de seu filho. Assim, devemos interpretar a afirmação do sentimento
da infância no século XVIII.(GÉLIS4 apud KUHLMANN JR, 1998, p. 23).
Sendo
a educação ou a institucionalização da criança responsabilidade da família,
percebe-se que os filhos são frutos da possibilidade da ascensão social. Pais enxergam
através de seus filhos a possibilidade da administração dos bens familiares e, conseqüentemente,
a ampliação dessa possessão. A educação seria, pois, o cerne desse processo de
elevação. Observa-se que, mesmo que as crianças ricas tivessem alguns privilégios
com relação à sua educação, as crianças das classes populares possuíram também
proteção, mesmo não sendo especificadamente da família: se é difícil encontrar registros
das classes populares, há um amplo conjunto de documentos no âmbito da vida pública,
envolvendo as iniciativas destinadas ao atendimento aos pobres e aos trabalhadores.
(KUHLMANN JR, 1998, p. 25).
Neste
sentido, o sentimento da afetividade dos pais pela criança parece ser expressivo.
Ainda que o amor materno seja um fator muito particular de cada mulher, é inegável
que a capacidade de gerar filhos só é possível a ela. Entretanto, o cuidar das crianças
ou a preocupação com sua educação passa a ser uma das responsabilidades atribuídas
à mulher em uma sociedade que emergia. Nesse contexto, concordamos com GÉLIS
quando ele aponta que por certo, a natureza continua a falar em favor do filho criado
pela mãe; porém esta tem apenas deveres; doravante pretende ter também o
direito de viver e recebe a aprovação do marido quando manifesta o desejo de
manter um corpo íntegro e atraente. (GÉLIS, 1991, p. 321) Portanto, as
referências nos indicam que vínculos foram estabelecidos, pois seria improvável
que os adultos ficassem tantos séculos entorpecidos sem manifestarem qualquer
sentimento pelas crianças.
Fonte:
ARIÈS,
Philippe. História social da criança e da família. Tradução de Dora Flaksman.
2. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2006.
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