O Corpo na Psicanálise Contemporânea: Sobre as Concepções Psicosomáticas de Pierre Marty e Joice McDougall
No final do século XIX, o médico austríaco Sigmund Freud (1856-1939) provoca uma mudança de paradigma com a descoberta do inconsciente e a fundação de uma nova teoria sobre os processos psíquicos. A partir dos revolucionários estudos sobre a histeria executados com a colaboração do psiquiatra francês Jean Martin Charcot (1825-1893), o até então eminente neurologista propõe que as doenças orgânicas não são decorrentes apenas de agentes biológicos e que o corpo é susceptível também às vicissitudes da mente. Nesse sentido, rompe com o modelo cartesiano vigente até então, pois aponta, conforme Aisenstein (1994) e Volich (2000), que a saúde de um indivíduo se encontra intimamente relacionada à sua própria história.
A preocupação
com a questão do corpo foi, portanto, fundamental para o surgimento da
psicanálise (Cukiert & Priszkulnik, 2000). No desenvolvimento de sua
teoria, contudo, Freud optou — devido a motivos meramente didáticos, segundo
Haynal e Pasini (1983) — por dedicar maior atenção à pesquisa das afecções
mentais e, conseqüentemente, colocou em segundo plano a investigação dos
fatores psíquicos associados à eclosão de doenças orgânicas. Todavia, foi
responsável, como destacam Rodrigues e Rodrigues (1991), pela instituição dos
pressupostos que serviram de base para que outros autores pudessem, em um
segundo momento, retomar a tese hipocrática da unidade funcional entre o
biológico e o psicológico.
Um novo
movimento psicossomático inspirado no pensamento freudiano começou a surgir a
partir de 1930 com Franz Alexander (1891-1964). Psicanalista húngaro radicado
nos Estados Unidos da América, o mesmo afirmava que certos conflitos psíquicos
provocam disfunções do sistema nervoso autônomo, desencadeando alterações nos
músculos lisos e produzindo secreções glandulares desordenadas (Santos Filho,
1993).
Assim sendo, as doenças orgânicas poderiam ser
entendidas basicamente como respostas fisiológicas exacerbadas decorrentes de
estados de tensão emocional crônica motivados por processos mentais
inconscientes desprovidos de significado simbólico.
Porém tais
proposições foram questionadas nas décadas seguintes por autores que
acreditavam que o modelo psicossomático de base psicofisiológica se apoiava em
uma visão dualista do homem. Endossando esses questionamentos, diversos
psicanalistas franceses se organizaram com o intuito de delinear uma nova via de
formação das manifestações corporais do sofrimento emocional. Liderados por
Pierre Marty (1918-1993), entendiam que pacientes somáticos1
se caracterizam por um modo de funcionamento psíquico distinto daquele
apresentado por neuróticos e psicóticos (Volich, 2000)...
...O modelo
formulado por Marty e seus colaboradores é apontado pela literatura científica
especializada como uma das vertentes psicossomáticas mais consistentes, pois
possibilita o esclarecimento de alguns dos complexos processos subjacentes à
interação mente-corpo...
Faz-se necessário salientar, contudo, que a
psicossomática psicanalítica não se reduz a esse modelo de Alexander... Nas
décadas de 70, 80 e 90, uma série de autores se empenhou em repensar o papel do
psíquico como dimensão constitutiva do processo saúde-doença. Dois autores Marty e McDougall
oferecem contribuições de grande valor para a compreensão do instigante objeto
ao qual se dedicam. Ressalte-se também que acrescentam conceitos que ainda não
foram devidamente incorporados à psicanálise. Por essa razão, considerou-se
pertinente focalizar a discussão de dois deles, a saber: pensamento operatório
e desafetação.
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