DESAFETAÇÃO: ALIENAÇÃO CORPORAL E
RESSOMATIZAÇÃO AFETIVA
Por Rodrigo
Sanches Peres
Segundo
McDougall (1991), pacientes somáticos geralmente são pouco capazes de elaborar
psiquicamente afetos potencialmente desestruturantes. Em função disso, não raro
lançam mão de estratégias defensivas arcaicas para evitar a eclosão de
mobilizações emocionais que podem fugir a seu controle. Tais operações, amiúde,
são adotadas de forma inconsciente e envolvem a exclusão sumária de
representações carregadas de sentimentos intoleráveis. Depreende-se, portanto,
que os indivíduos em questão simplesmente "ejetam" os afetos do
próprio aparelho mental.
Considerando
as particularidades desses processos protetores propõe que os mesmos não devem
ser comparados à repressão — uma vez que não são executados conscientemente — e
tampouco ao recalque — pois não transformam emoções em material inconsciente.
Seguindo esse raciocínio, a tendência a "ejetar" do próprio psiquismo
percepções, fantasias e pensamentos associados a afetos se assemelha, em seus
aspectos principais, a um mecanismo de defesa que, de acordo com Freud
(1894a/1996), pode ser considerado dos mais radicais: o repúdio para fora do
ego (Verwerfung). Tal recurso não somente promove a exclusão de sentimentos do
plano da consciência, mas também leva o indivíduo a agir como se nunca tivesse
tido acesso aos conteúdos repudiados.
Não obstante,
faz-se necessário destacar que, na concepção freudiana, o repúdio para fora do
ego se desdobra no surgimento de fenômenos alucinatórios e delirantes, de
maneira que pode ser entendido como uma defesa específica das psicoses.
Ou seja: a
utilização desse expediente pode promover uma cisão entre o corpo anatômico e o
corpo erógeno, culminando na ressomatização do afeto (Montagna, 1988).
Tomando como
base a hipótese precedente, deduz-se que os afetos de pacientes somáticos
usualmente não encontram nenhum dos três destinos descritos por Freud
(1894b/1996), posto que, quando excluídos, não são convertidos, deslocados ou
transformados, como ocorre, respectivamente, na histeria, na neurose obsessiva
e na neurose de angústia ou na melancolia. Desse modo, McDougall (1989) defende
que as emoções podem — ao contrário do que sugerem os pressupostos
metapsicológicos clássicos — efetivamente desaparecer do aparelho psíquico
mediante a expulsão do plano consciente de pensamentos, fantasias e
representações associadas a afetos capazes de provocar sofrimento.
O emprego de
tal estratégia defensiva, porém, tende a produzir um distúrbio da economia
afetiva. O neologismo "desafetação" foi criado por McDougall (1984)
especialmente para fazer referência a esse distúrbio. Como se sabe, o prefixo
latino des sugere separação, perda ou desligamento. Torna-se patente, assim,
que a composição do termo indica, por si só, que a patologia em questão envolve
o rompimento do indivíduo com seus próprios sentimentos. A desafetação, com
efeito, leva o sujeito a encontrar dificuldades para apreender contrastes
emocionais e discriminar tanto seus afetos quanto os das demais pessoas com as
quais convive, conduzindo ao estabelecimento de vínculos pouco consistentes
(Bunemer, 1995).
Todavia, o
indivíduo desafetado pode — sobretudo em situações de sofrimento psíquico —
manter relações fusionais com o intuito de recriar a ilusão primitiva de
unidade corporal e mental com a figura materna (McDougall, 1991). Essa ilusão,
a propósito, possibilita ao bebê sobreviver às tensões que o acometem, já que
fomenta a crença da existência de apenas um corpo para dois seres vivos. O uso
desse expediente, entretanto, tende a tornar o indivíduo gradativamente incapaz
de distinguir a si mesmo do outro. Por essa razão, engendra a eclosão de angústias
psicóticas que podem ser decodificadas como ameaças biológicas e criar
condições favoráveis para o surgimento de somatizações, visto que estimulam o
corpo a se pronunciar mediante a utilização dos parcos recursos defensivos dos
quais dispõe (Ferraz, 1997).
Ressalte-se
também que a desafetação leva o indivíduo a encontrar nos atos — e não no
trabalho mental, como fazem os neuróticos — a única possibilidade de escoamento
das tensões (Caïn, 1985/2001). Tais atos se afiguram essencialmente como
movimentos de exteriorização desprovidos de valor simbólico. Seguindo esse
raciocínio, McDougall (1989) propõe que os desafetados procuram compensar com
um "agir compulsivo" a restrição da capacidade de simbolização que os
caracteriza. Essa compensação, contudo, pode se tornar um
"ato-sintoma" e incidir sobre o corpo, pois o mesmo é percebido como
um objeto alheio ao psiquismo pelos sujeitos em questão (Rocha, 1988).
Conforme
McDougall (1989), perturbações relacionais da díade mãe-bebê se destacam como o
fator etiológico central da desafetação. Essa hipótese parte do princípio de
que a figura materna tem como principal tarefa exercer a função de
pára-excitação, ou seja, proteger seu filho das tensões provenientes do mundo
exterior. Para tanto, deve interpretar a comunicação primitiva e nomear os
estados afetivos de seu bebê, promovendo a progressiva dessomatização do
aparelho mental. O adequado desempenho dessa tarefa subsidia o acesso da
criança à palavra e favorece o desenvolvimento da capacidade de simbolização.
Faz-se
necessário salientar ainda que, para McDougall (1989), não se deve associar
indiscriminadamente a desafetação à somatização, uma vez que qualquer indivíduo
pode apresentar sintomas corporais quando as excitações às quais é submetido
fogem a seu controle. Porém usualmente o sujeito que não é portador desse
distúrbio da economia afetiva somatiza somente em situações extremas, que
tornam inoperante o emprego de mecanismos de defesa menos radicais do que o
repúdio para fora do ego. Os desafetados, em contrapartida, tendem a ejetar da
consciência qualquer sentimento potencialmente desestruturante e, como
conseqüência, são impelidos a apresentar reações orgânicas perante o sofrimento
mental com maior freqüência e intensidade.
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