terça-feira, 1 de janeiro de 2013

História Social da Criança e da Família


Felipe Ariés



Resgatar os antecedentes históricos da infância é dar voz a diferentes documentos hoje pesquisados e que em determinados períodos testemunharam o papel da criança na sociedade. Reis, padres, professores, pais, mães, vizinhos, gente rica, gente pobre são porta-vozes da construção da infância no passado e continuam a ser no presente. Ou seja, a concepção de criança é vivida e apreendida a partir das construções feitas pelos adultos, nas quais, muitas vezes, a criança não pode discursar, defender-se ou falar sobre si mesma. Se pudéssemos dar voz às crianças que estão nas casas, ruas, instituições, buscando a construção de sua própria história, é possível que elas nos relatem situações que envolvem sentimentos e sensações diferentes da perspectiva do adulto. Sabemos que a história da criança é registrada a partir do olhar dos adultos, pois a criança não pode registrar sua própria história. Se fosse o caso de darmos voz a essas crianças, certamente ouviríamos histórias de crianças relatando momentos de alegria, encontrados no amor da família, no direito respeitado, nos espaços para brincadeiras, enfim, nos encantos de sua vida, a partir da vivência de situações agradáveis e felizes. Por outro lado, ouviríamos, também, histórias de incompreensões sofridas, tristezas, atos de injustiça, violência física e moral, desamparo, enfim, os desencantos com a vida a que um grupo grande de crianças está exposto. Diante disso, temos uma indicação de que a infância não acontece da mesma forma para todas as crianças e as histórias se diversificam a cada experiência. A visão sobre a infância, atualmente, como um período específico pelo qual todos passam é uma construção definida no momento presente. A questão de que todos os indivíduos nascem bebês e serão crianças até um determinado período, independente da condição vivida, é inegável, entretanto, tal premissa nem sempre foi percebida dessa maneira e por diversos períodos se questionou qual era o tempo da infância e quem era a criança. O pesquisador francês Philippe Ariès, em sua obra História Social da Criança e da Família, publicada em 1960, vai apontar que o conceito ou a idéia que se tem da infância foi sendo historicamente construído e que a criança, por muito tempo, não foi vista como um ser em desenvolvimento, com características e necessidades próprias, e sim como um adulto em miniatura. Nesse sentido, a história da infância surge como possibilidade para muitas reflexões sobre a forma como entendemos e nos relacionamos atualmente com a criança. Assim, gostaríamos de discutir a respeito da construção do conceito de infância a partir de duas perspectivas: a de Philippe Ariès, de que o sentimento da infância teria surgido apenas na Modernidade, e dos apontamentos teóricos de Moysés Kuhlmann Jr., Jacques Gélis, Daniele Alexandre-Bidón e Pierre Riché, que, em suas pesquisas, indicam a presença de uma preocupação com as crianças em períodos anteriores, como a Idade Média.

ARIÈS é considerado o precursor da história da infância, pois foi através de estudos realizados por ele com variadas fontes, como a iconografia religiosa e leiga, diários de família, dossiês familiares, cartas, registros de batismo e inscrições em túmulos, que surgem os primeiros trabalhos na área de história, apontando para o lugar e a representação da criança na sociedade dos séculos XII ao XVII. Baseando-se na história das mentalidades2, ARIÈS (1981, p. 26) afirma:

(...) é sempre, quer ou não, uma história comparativa e regressiva. Partimos necessariamente do que sabemos sobre o comportamento do homem de hoje, como de um modelo ao qual comparamos os dados do passado . com, a condição
de, a seguir, considerar o modelo novo, construído com o auxílio dos dados do passado, como uma segunda origem, e descer novamente até o presente, modificando a imagem ingênua que tínhamos no início.

A história da criança contada por Philippe Áries


No período de grandes transformações históricas, no caso, do século XII ao XVII, foco de localização de sua pesquisa, a infância tomou diferentes conotações dentro do imaginário do homem em todos os aspectos sociais, culturais, políticos e econômicos, de acordo com cada período histórico. A criança seria vista como substituível, como ser produtivo que tinha uma função utilitária para a sociedade, pois a partir dos sete anos de idade era inserida na vida adulta e tornava-se útil na economia familiar, realizando tarefas, imitando seus pais e suas mães, acompanhado-os em seus ofícios, cumprindo, assim, seu papel perante a coletividade. Com relação às idades da vida humana, a pesquisa de ARIÈS aponta que a forma de representar a cronologia humana passou por várias mudanças, indicando diferentes formas de representar esses períodos. Tais representações utilizariam principalmente os elementos da natureza, estudo dos astros, aspectos das crenças populares, fenômenos naturais e sobrenaturais, os quais faziam parte de um contexto governado pelas leis da teologia, enfatizando uma visão mística. Dessa forma, as representações da idade do homem pareciam abstratas, além disso, muitos morriam antes de percorrer todos os ciclos da vida. No caso da infância propriamente dita, o autor, partindo de relatos e textos dos século XII ao XVIII, demonstra que as pessoas definiam a idade da criança como .... a primeira idade é a infância que planta os dentes, e essa idade começa quando nasce e dura até os sete anos, e nessa idade aquilo que nasce é chamado de enfant (criança), que quer dizer não falante, pois nessa idade a pessoa não pode falar bem nem formar perfeitamente suas palavras.... (ARIÉS, 1981, p. 36). Nessa perspectiva, a fase da infância seria caracterizada pela ausência da fala e de comportamentos esperados, considerados como manifestações .irracionais.. A questão da ausência da racionalidade também é apontada por PLATÃO, SANTO AGOSTINHO e DESCARTES (GANEBIN, 1997). Nesse sentido, a infância se contrapõe à vida adulta, pois os comportamentos considerados racionais, ou providos da razão, seriam encontrados apenas no indivíduo adulto, identificando, assim, o adulto como o homem que pensa, raciocina e age, com capacidade para alterar o mundo que o cerca; tal capacidade não seria possível às crianças. Observa-se que a passagem da vida infantil para a vida adulta seria uma condição a ser superada: .... a passagem da criança pela família e pela sociedade era muito breve e muito insignificante para que tivesse tempo ou razão de forçar a memória e tocar a sensibilidade.... (ARIÉS, 1981, p. 10). A infância nesse contexto seria comparada à velhice, pois se, de um lado, temos a infância constituída pela falta de razão, por outro, teríamos a velhice marcada pela senilidade .... porque as pessoas velhas já não têm os  sentidos tão bons como já tiveram, e caducam em sua velhice (...) o velho está sempre tossindo, escarrando e sujando.... (ARIÈS, 1981, p. 37). As demais idades, no caso, a juventude e a vida adulta, caracterizar-se-iam pela sua força, virilidade e principalmente pelas funções produtivas dentro da vida social e coletiva. Entende-se que foi uma época voltada ao poder da juventude. Considerando essa questão, percebemos que, ainda hoje, na nossa sociedade, es a situação é recorrente, à medida que há uma ênfase na valorização do indivíduo produtivo, excluindo-se crianças e idosos de diversos setores e espaços sociais. Assim, a história da criança contada por ARIÈS, destaca que as crianças foram tratadas como adultos em miniatura: na sua maneira de vestir-se, na participação ativa em reuniões, festas e danças. Os adultos se relacionavam com as crianças sem discriminações, falavam vulgaridades, realizavam brincadeiras grosseiras, todos os tipos de assuntos eram discutidos na sua frente, inclusive a participação em jogos sexuais. Isto ocorria porque não acreditavam na possibilidade da existência de uma inocência pueril, ou na diferença de características entre adultos e crianças: .... no mundo das fórmulas românticas, e expressão particular, e sim homens de tamanho reduzido.... (ARIÈS, 1981, p. 51). Dessa forma, as crianças eram submetidas e preparadas para suas funções dentro da organização social. O desenvolvimento das suas capacidades se dá a partir das relações que mantêm com os mais velhos. Portanto, percebe-se uma distância da idade adulta e da infância em perspectiva cronológica e de desenvolvimento biológico, pois a infância é retratada pelas afinidades que o adulto estabelece com a criança, ou seja, tudo era permitido, realizado e discutido na sua presença. O autor destaca, ainda, que foram séculos de altos índices de mortalidade e de práticas de infanticídio. As crianças eram jogadas fora e substituídas por outras sem sentimentos, na intenção de conseguir um espécime melhor, mais saudável, mais forte que correspondesse às expectativas dos pais e de uma sociedade que estava organizada em torno dessa perspectiva utilitária da infância. O sentimento de amor materno não existia, segundo o autor, como  nessa passagem, é possível apreender tal idéia: ....uma vizinha, mulher de um relator, tranqüilizar assim uma mulher inquieta, mãe de cinco pestes, e que acabara de dar à luz:
Antes que eles te possam causar muitos problemas, tu terás perdido a metade, e quem sabe todos..... (ARIÈS, 1981, p. 56). Assim, as crianças sadias eram mantidas por questões de necessidade, mas a mortalidade também era algo aceito com bastante naturalidade. Outra característica da época era entregar a criança para que outra família a educasse. O retorno para casa se dava aos sete anos, se sobrevivesse. Nesta idade, estaria apta para ser inserida na vida da família e no trabalho. Nesse contexto, as mudanças com relação ao cuidado com a criança, só vêm ocorrer mais tarde, no século XVII, com a interferência dos poderes públicos e com a preocupação da Igreja em não aceitar passivamente o infanticídio, antes secretamente tolerado. Preservar e cuidar das crianças seria um trabalho realizado exclusivamente pelas mulheres, no caso, as amas e parteiras, que agiriam como protetoras dos bebês, criando uma nova concepção sobre a manutenção da vida infantil, ....como se a consciência comum só então descobrisse que a alma da criança também era imortal. É certo que essa importância dada à personalidade da criança se ligava a uma cristianização mais profunda dos costumes.... (ARIÈS, 1981, p. 61). Dessa forma, surgiram medidas para salvar as crianças. As condições de higiene foram melhoradas e a preocupação com a saúde das crianças fez com que os pais não aceitassem perdê-las com naturalidade. No século XIV, devido ao grande movimento da religiosidade cristã, surge a criança mística ou criança anjo; ....essa imagem da criança associada ao Menino Jesus ou Virgem Maria, causa consternação, ternura nas pessoas.. (OLIVEIRA, 1999, p. 22). A representação da criança mística, aos poucos, vai se transformando, assim como as relações familiares. A mudança cultural, influenciada por todas as transformações sociais, políticas e econômicas que a sociedade vem sofrendo, aponta para mudanças no interior da família e das relações estabelecidas entre pais e filhos. A criança passa a ser educada pela própria família, o que fez com que se despertasse um novo sentimento por ela. ARIÈS caracteriza esse momento como o surgimento do sentimento de infância, que será constituído por dois momentos, chamados por ele de paparicação e apego.
A paparicação seria um sentimento despertado pela beleza, ingenuidade e graciosidade da criança. E isto fez com que os adultos se aproximassem cada vez mais dos filhos. Assim, os gracejos das crianças eram mostrados a outros adultos, fazendo da criança uma espécie de distração, tornando-se bichinhos de estimação., como cita ARIÈS (1981, p. 68): ....ela fala de um modo engraçado: e titota, tetita y totata..... e (..) .eu a amo muito. (...) ela faz cem pequenas coisinhas: faz carinhos, bate, faz o sinal da cruz, pede desculpas, faz reverência, beija a mão, sacode os ombros, dança, agrada, segura o queixo: enfim, ela é bonita em tudo o que faz. Distraio-me com ela horas a fio.....
Por essa necessidade de manter uma pessoa provida de tanta beleza e graça, surgem medidas para salvá-la e garantir sua sobrevivência. As condições de higiene foram melhoradas e a preocupação com a saúde das crianças fez com os pais não aceitassem perder seus filhos com naturalidade e, os que perdiam, aceitavam como sendo a vontade de Deus, segundo a orientação religiosa da época. Este sentimento, despertado primeiramente nas mulheres, não era compartilhado por todas as pessoas; algumas ficavam irritadas com a nova forma de tratar as crianças. ARIÈS cita, em suas referências, a hostilidade de MONTAIGNE com o novo comportamento adotado: ....não posso conceber essa paixão que faz com as pessoas beijem as crianças recém-nascidas, que não têm ainda movimento na alma, nem forma reconhecível no corpo pela qual se possam tornar amáveis, e nunca permiti de boa vontade que elas fossem alimentadas na minha frente.... (MONTAIGNE , apud, ARIÈS, 1981, p. 159).
O sentimento de apego surge a partir do século XVII, como uma manifestação da sociedade contra a paparicação da criança, e propõe separá-la do adulto para educá-la nos costumes e na disciplina, dentro de uma visão mais racional.
Assim, foi dentro desse contexto moral que a educação das crianças foi inspirada, através do posicionamento de moralistas e educadores e, principalmente, com o surgimento da família nuclear gerada dentro dos padrões da cúria: o modelo de família conservadora, símbolo da continuidade parental e patriarcal que marca a relação pai, mãe e criança. A preocupação da família com a educação da criança fiz com que mudanças ocorressem e os pais começassem, então, a encarregar-se de seus filhos. Conseqüentemente, houve a necessidade da imposição de regras e normas na nova educação e a formação de uma criança melhor doutrinada atendendo à nova sociedade que emergia. Tal concepção de indivíduo que aparece faz com que a criança seja alvo do controle familiar ou do grupo social em que ela está inserida.
Com o surgimento desse novo homem, moderno, aparecem também as primeiras instituições educacionais, permitindo a concepção de que os adultos .compreenderam a particularidade da infância e a importância tanto moral como social e metódica das crianças em instituições especiais, adaptadas a essas finalidades.... (ARIÈS, 1981, p. 193).
Com a evolução nas relações sociais que se estabelecem na Idade Moderna, a criança passa a ter um papel central nas preocupações da família e da sociedade. A nova percepção e organização social fizeram com que os laços entre adultos e crianças, pais e filhos, fossem fortalecidos. A partir deste momento, a criança começa a ser vista como indivíduo social, dentro da coletividade, e a família tem grande preocupação com sua saúde e sua educação. Tais elementos são fatores imprescindíveis para a mudança de toda a relação social.

Um olhar diferente sobre a infância de Áries

Não podemos negar a contribuição de Phillipe ARIÈS à história da criança e a indicação de que ela só aparece na Idade Moderna, no entanto, contrapondo-se a essa proposição, Moysés KUHLMANN JR., em sua obra Infância e Educação Infantil: uma abordagem histórica, referenciada por Pierre RICHÉ e Daniele ALEXANDRE BIDON, além de Jacques GÉLIS, aponta novas re-interpretações em suas pesquisas procurando a infância em períodos anteriores. Esses autores, dando voz a diferentes documentos históricos, consideram que a percepção da infância pelos adultos existia em idades mais remotas, ou seja, havia a preocupação com a sobrevivência da criança, com a sua educação, sua religiosidade, os cuidados com o seu corpo, com sua alimentação, enfim, com uma época de aprendizagens, com brinquedos, roupas e construção de móveis e objetos apropriados à criança. Esse cruzamento de olhares nos leva a pensar em outras perspectivas sobre a concepção da infância. KUHLMANN JR. (1998, p. 22) nos dá pistas para compreendermos o período quando ele diz: .O sentimento de infância não seria inexistente em tempos antigos ou na Idade Média, como estudos posteriores mostraram. Em livros escritos pelos historiadores Pierre Riché e Daniele Alexandre-Bidon (...), fartamente ilustrados com pinturas e objetos, arrolam-se os mais variados testemunhos da existência de um sentimento da especificidade da infância naquela época.. KUHLMANN JR. salienta que a construção da infância de ARIÈS é uma percepção generalizante e linear, pois sua pesquisa fundamenta-se em fontes de famílias abastadas e o historiador francês pressupõe que o sentimento do amor pelas crianças surge primeiramente no interior dessas famílias, principalmente a partir da particularização da educação de filhos homens. Ficaram à margem as fontes históricas populares, com poucos registros da sua infância, devido à precariedade das condições econômicas. Mesmo em abordagens que tomam a infância em sua referência etimológica, como os sem-voz, sugerindo uma certa identidade com as perspectivas da história vista de baixo, a história dos vencidos, essa visão monolítica permanece e mantém um preconceito em relação às classes subalternas, desconsiderando a sua presença interior nas relações sociais. Embora reconhecendo o papel preponderante que os setores dominantes exercem sobre a vida social, as fontes disponíveis, como, por exemplo, o diário de Luís XIII, utilizado por Ariès, geralmente favorecem a interpretação de que essas camadas sociais teriam monopolizado a condução do processo de promoção do respeito à criança. (KUHLMANN JR, 1998, p. 24).
Neste sentindo, percebe-se que a história apontada por ARIÈS é uma história de meninos ricos, confirmando uma educação diferenciada às duas infâncias, da criança rica para a criança pobre. Por um lado, temos a criança rica, evidenciada principalmente na particularização da educação de meninos, enclausurados num espaço íntimo com sua família, ocupados com aprendizagens para a vida social, com regras de etiqueta e de moralidade que deveriam saber e seguir, bem como a aprendizagem de música, dança, leitura e a utilização de roupas adequadas às características da criança. Temos também os chamados .precoces. ou .prodígios. por uma elite que acelerava o desenvolvimento de seus filhos homens, para fazer demonstrações de seus dotes. Por outro lado, é possível inferir a existência da infância pobre percebida nas crianças do povo, filhos de camponeses e artesões, vivendo em espaços compartilhados com todos, participando das conversas com os adultos, nas praças com seus folguedos infantis, nas reuniões noturnas, sem modos e talvez vestidas como adultos. Esta caracterização das crianças do povo como indivíduos sem modos, livres, com comportamentos inadequados, deve-se ao fato de que o conceito de pudor e vergonha são valores que foram sendo construídos a partir das relações das famílias abastadas, sendo uma relação que se constrói verticalmente das classes altas para as baixas. Todavia, isso não quer dizer que o sentimento ou a educação, mesmo informal, das crianças pobres não existisse. Portanto, as aprendizagens ocorriam nas famílias de todas as crianças, pobres e ricas, e a cultura dessas duas infâncias tem como parâmetro os laços com o mundo dos adultos, possibilitado, principalmente, pela liberdade em espaços compartilhados; a criança presenciava experiências que resultavam dessas relações: aprendia convivendo. Nessa ótica da importância das relações familiares com a criança, Jacques GÉLIS vai destacar que tais relações eram muito importantes, pois todos compartilhavam em tudo, ou seja, um dependia do outro: .nesse imaginário da vida e do corpo, a criança era considerada um rebento do tronco comunitário, uma parte do grande corpo coletivo que, pelo engaste das gerações, transcendia o tempo. Assim, pertencia à linhagem tanto quanto aos pais. Neste sentido, era uma criança pública (GÉLIS, 1991, p. 313). Diante disso, observa-se que a presença da criança no seio familiar era muito significativa, pois ela marca a sucessão parental e, sendo ela considerada pública, evidencia-se a preocupação que a família tinha em garantir a sobrevivência da criança e, principalmente, sua educação, pois, influenciada pelos familiares ou vizinhos, a infância  era uma época de aprendizagens: .as aprendizagens da infância e da adolescência deviam, pois, ao mesmo tempo fortalecer o corpo, aguçar os sentidos, habilitar o indivíduo a superar os revezes da sorte e, principalmente, a transmitir também a vida, a fim de assegurar a continuidade da família. (GÉLIS, 1991, p. 315). Diante deste contexto, o pai e a mãe seriam os responsáveis por esta primeira educação, diferente do que ARIÈS destaca em sua pesquisa  a família e principalmente a mãe não possuiriam a sensibilidade ou o apego pelos seus filhos.
Assim, não podemos generalizar afirmando que toda a sociedade medieval  pais, mães, enfim todos que habitavam com as crianças  visse as crianças apenas como servidora e sujeito produtivo, numa perspectiva utilitária da infância, nem que todo o sentimento, no caso, o amor, envolvido nestas relações ficasse alheio a elas ou não existisse. Quanto a isso, o autor vai dizer que .a indiferença medieval pela criança é uma fábula e, no século XVI, como vimos, os pais se preocupavam com a saúde e a cura de seu filho. Assim, devemos interpretar a afirmação do sentimento da infância no século XVIII.(GÉLIS4 apud KUHLMANN JR, 1998, p. 23).
Sendo a educação ou a institucionalização da criança responsabilidade da família, percebe-se que os filhos são frutos da possibilidade da ascensão social. Pais enxergam através de seus filhos a possibilidade da administração dos bens familiares e, conseqüentemente, a ampliação dessa possessão. A educação seria, pois, o cerne desse processo de elevação. Observa-se que, mesmo que as crianças ricas tivessem alguns privilégios com relação à sua educação, as crianças das classes populares possuíram também proteção, mesmo não sendo especificadamente da família: se é difícil encontrar registros das classes populares, há um amplo conjunto de documentos no âmbito da vida pública, envolvendo as iniciativas destinadas ao atendimento aos pobres e aos trabalhadores. (KUHLMANN JR, 1998, p. 25).
Neste sentido, o sentimento da afetividade dos pais pela criança parece ser expressivo. Ainda que o amor materno seja um fator muito particular de cada mulher, é inegável que a capacidade de gerar filhos só é possível a ela. Entretanto, o cuidar das crianças ou a preocupação com sua educação passa a ser uma das responsabilidades atribuídas à mulher em uma sociedade que emergia. Nesse contexto, concordamos com GÉLIS quando ele aponta que por certo, a natureza continua a falar em favor do filho criado pela mãe; porém esta tem apenas deveres; doravante pretende ter também o direito de viver e recebe a aprovação do marido quando manifesta o desejo de manter um corpo íntegro e atraente. (GÉLIS, 1991, p. 321) Portanto, as referências nos indicam que vínculos foram estabelecidos, pois seria improvável que os adultos ficassem tantos séculos entorpecidos sem manifestarem qualquer sentimento pelas crianças.

Fonte:
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Tradução de Dora Flaksman. 2. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2006.

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