sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Psicossomática – parte 3



DESAFETAÇÃO: ALIENAÇÃO CORPORAL E RESSOMATIZAÇÃO AFETIVA

Por   Rodrigo Sanches Peres                 
                                                           


Segundo McDougall (1991), pacientes somáticos geralmente são pouco capazes de elaborar psiquicamente afetos potencialmente desestruturantes. Em função disso, não raro lançam mão de estratégias defensivas arcaicas para evitar a eclosão de mobilizações emocionais que podem fugir a seu controle. Tais operações, amiúde, são adotadas de forma inconsciente e envolvem a exclusão sumária de representações carregadas de sentimentos intoleráveis. Depreende-se, portanto, que os indivíduos em questão simplesmente "ejetam" os afetos do próprio aparelho mental.
Considerando as particularidades desses processos protetores propõe que os mesmos não devem ser comparados à repressão — uma vez que não são executados conscientemente — e tampouco ao recalque — pois não transformam emoções em material inconsciente. Seguindo esse raciocínio, a tendência a "ejetar" do próprio psiquismo percepções, fantasias e pensamentos associados a afetos se assemelha, em seus aspectos principais, a um mecanismo de defesa que, de acordo com Freud (1894a/1996), pode ser considerado dos mais radicais: o repúdio para fora do ego (Verwerfung). Tal recurso não somente promove a exclusão de sentimentos do plano da consciência, mas também leva o indivíduo a agir como se nunca tivesse tido acesso aos conteúdos repudiados.
Não obstante, faz-se necessário destacar que, na concepção freudiana, o repúdio para fora do ego se desdobra no surgimento de fenômenos alucinatórios e delirantes, de maneira que pode ser entendido como uma defesa específica das psicoses.

Ou seja: a utilização desse expediente pode promover uma cisão entre o corpo anatômico e o corpo erógeno, culminando na ressomatização do afeto (Montagna, 1988).

Tomando como base a hipótese precedente, deduz-se que os afetos de pacientes somáticos usualmente não encontram nenhum dos três destinos descritos por Freud (1894b/1996), posto que, quando excluídos, não são convertidos, deslocados ou transformados, como ocorre, respectivamente, na histeria, na neurose obsessiva e na neurose de angústia ou na melancolia. Desse modo, McDougall (1989) defende que as emoções podem — ao contrário do que sugerem os pressupostos metapsicológicos clássicos — efetivamente desaparecer do aparelho psíquico mediante a expulsão do plano consciente de pensamentos, fantasias e representações associadas a afetos capazes de provocar sofrimento.
O emprego de tal estratégia defensiva, porém, tende a produzir um distúrbio da economia afetiva. O neologismo "desafetação" foi criado por McDougall (1984) especialmente para fazer referência a esse distúrbio. Como se sabe, o prefixo latino des sugere separação, perda ou desligamento. Torna-se patente, assim, que a composição do termo indica, por si só, que a patologia em questão envolve o rompimento do indivíduo com seus próprios sentimentos. A desafetação, com efeito, leva o sujeito a encontrar dificuldades para apreender contrastes emocionais e discriminar tanto seus afetos quanto os das demais pessoas com as quais convive, conduzindo ao estabelecimento de vínculos pouco consistentes (Bunemer, 1995).
Todavia, o indivíduo desafetado pode — sobretudo em situações de sofrimento psíquico — manter relações fusionais com o intuito de recriar a ilusão primitiva de unidade corporal e mental com a figura materna (McDougall, 1991). Essa ilusão, a propósito, possibilita ao bebê sobreviver às tensões que o acometem, já que fomenta a crença da existência de apenas um corpo para dois seres vivos. O uso desse expediente, entretanto, tende a tornar o indivíduo gradativamente incapaz de distinguir a si mesmo do outro. Por essa razão, engendra a eclosão de angústias psicóticas que podem ser decodificadas como ameaças biológicas e criar condições favoráveis para o surgimento de somatizações, visto que estimulam o corpo a se pronunciar mediante a utilização dos parcos recursos defensivos dos quais dispõe (Ferraz, 1997).
Ressalte-se também que a desafetação leva o indivíduo a encontrar nos atos — e não no trabalho mental, como fazem os neuróticos — a única possibilidade de escoamento das tensões (Caïn, 1985/2001). Tais atos se afiguram essencialmente como movimentos de exteriorização desprovidos de valor simbólico. Seguindo esse raciocínio, McDougall (1989) propõe que os desafetados procuram compensar com um "agir compulsivo" a restrição da capacidade de simbolização que os caracteriza. Essa compensação, contudo, pode se tornar um "ato-sintoma" e incidir sobre o corpo, pois o mesmo é percebido como um objeto alheio ao psiquismo pelos sujeitos em questão (Rocha, 1988).
Conforme McDougall (1989), perturbações relacionais da díade mãe-bebê se destacam como o fator etiológico central da desafetação. Essa hipótese parte do princípio de que a figura materna tem como principal tarefa exercer a função de pára-excitação, ou seja, proteger seu filho das tensões provenientes do mundo exterior. Para tanto, deve interpretar a comunicação primitiva e nomear os estados afetivos de seu bebê, promovendo a progressiva dessomatização do aparelho mental. O adequado desempenho dessa tarefa subsidia o acesso da criança à palavra e favorece o desenvolvimento da capacidade de simbolização.
Faz-se necessário salientar ainda que, para McDougall (1989), não se deve associar indiscriminadamente a desafetação à somatização, uma vez que qualquer indivíduo pode apresentar sintomas corporais quando as excitações às quais é submetido fogem a seu controle. Porém usualmente o sujeito que não é portador desse distúrbio da economia afetiva somatiza somente em situações extremas, que tornam inoperante o emprego de mecanismos de defesa menos radicais do que o repúdio para fora do ego. Os desafetados, em contrapartida, tendem a ejetar da consciência qualquer sentimento potencialmente desestruturante e, como conseqüência, são impelidos a apresentar reações orgânicas perante o sofrimento mental com maior freqüência e intensidade.


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