sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Psicossomática – parte 4


SOFRIMENTO CORPORAL E (A AUSÊNCIA DE) SIGNIFICADO SIMBÓLICO

Por   Rodrigo Sanches Peres                 
                                                                 


Diante do exposto, é possível concluir que o acionamento dos mecanismos de produção dos sintomas corporais apresentados por pacientes somáticos pode ser facilitado, segundo Marty (1993), pela execução de investimentos libidinais arcaicos, ou, conforme McDougall (1991), pela utilização de recursos defensivos primitivos. Evidencia-se, assim, que há uma divergência importante entre as propostas teóricas dos referidos autores. Todavia, ambos postulam que esses sujeitos se caracterizam por uma marcante restrição da capacidade de elaboração psíquica. Em função disso, tanto Marty quanto McDougall entendem as afecções orgânicas potencializadas pelo pensamento operatório ou pela desafetação como manifestações desprovidas de valor simbólico.
Como se sabe desde o advento do inconsciente, a histeria possui um significado metafórico, posto que a repressão — mecanismo de formação de sintomas do qual decorre — tem uma natureza exclusivamente psíquica. Por essa razão, o modelo etiológico de tal psicopatologia não é empregado por Marty e tampouco por McDougall na tentativa de compreensão dos fatores emocionais associados ao adoecimento de pacientes somáticos. Em última análise, ambos defendem que os sujeitos em questão são vítimas de um fenômeno análogo àquele que, segundo Freud (1926/1996), engendra o desenvolvimento das neuroses atuais, a saber: a transformação direta da excitação em angústias automáticas.

A literatura psicanalítica clássica preconiza que os sintomas físicos da neurose de angústia, da neurastenia e da hipocondria, isto é, dos quadros clínicos que compõem a referida classe nosográfica, têm como fator desencadeante a ação de processos totalmente somáticos, de modo que não podem ser considerados uma expressão simbólica. Tendo em vista que esses processos são causados por lacunas no aparelho mental que favorecem a tradução corporal de uma história sem palavras, Marty e McDougall propuseram que, em termos etiológicos, a somatização está muito mais próxima da neurose atual do que da histeria. Com essa tese, a propósito, revolucionaram a psicossomática e ampliaram os limites da metapsicologia.
Os referidos autores também assumem posições teóricas semelhantes ao afirmar que a expressão corporal de conflitos emocionais se afigura, nas neuroses, como uma medida eventual, funcional e dotada de pouco poder destrutivo. O funcionamento operatório e a desafetação, em contraste, implicam, cada qual a seu modo, a utilização recorrente do artifício em questão, o que favorece o surgimento de enfermidades mais severas. Dessa maneira, ambos defendem que indivíduos que possuem essas características são portadores de uma vulnerabilidade psicossomática acentuada e não devem ser comparados com aqueles que apresentam sintomas orgânicos ocasionais (Peres & Santos, no prelo).
Ressalte-se ainda que, para Marty (1993), a utilização do termo "psicossomático" como adjetivo remete ao antigo dualismo cartesiano. Seguindo esse raciocínio, afirmar que uma dada doença é psicossomática encerra uma marcante falácia. McDougall (1991) compartilha dessa opinião, o que torna patente que ambos concordam que a unicidade mente-corpo faz do homem um ser psicossomático por definição. Não obstante, os referidos autores reconhecem a multicausalidade do adoecimento e não atribuem exclusivamente a determinantes psíquicos a eclosão de enfermidades somáticas. Em virtude da complexidade de tal processo, contudo, inegavelmente privilegiam a análise dos fatores emocionais associados a esse processo.
Essa opção metodológica, cumpre assinalar, não se apresenta como um reducionismo psicológico semelhante àquele forjado nos primórdios da psicossomática psicanalítica, mas, sim, como um recorte necessário diante das múltiplas facetas do fenômeno que se propõem analisar. Ou seja: é perfeitamente compatível com o modelo biopsicossocial de compreensão do processo saúde-doença vigente nos dias de hoje. Ademais, as proposições de Marty e McDougall não excluem outras tentativas de explicação da gênese de enfermidades orgânicas — sejam elas médicas, culturais, sociais ou de outro caráter — apoiadas em elementos conceituais de raciocínio distintos (Peres, 2004).
Por fim, vale destacar que Marty e McDougall estão de acordo que, nos casos em que a figura materna não cumpre de forma apropriada a função de pára-excitação, os sinais pré-verbais que o bebê emite não são inseridos em um código lingüístico. As experiências que a criança vive não serão, portanto, devidamente simbolizadas e seu corpo se apresentará como a via privilegiada de exteriorização de seus conflitos, engendrando o desenvolvimento de somatizações. Em suma: para ambos, o corpo anatômico se torna erógeno como resultado de um processo gradativo e complexo que tem início nos primeiros meses de vida.
O presente estudo aponta que a articulação entre as contribuições teóricas de Marty e McDougall é um recurso pertinente para a elucidação do papel dos fatores emocionais tanto no surgimento quanto no curso das doenças orgânicas. Obviamente, porém, essa aproximação não deve ser executada de forma ingênua, já que existem importantes incongruências entre o pensamento dos referidos autores. É preciso reconhecer também que nenhum deles tem a pretensão de esgotar o assunto. Todavia, suas proposições são dotadas de um valor inquestionável, pois, no atual estágio do conhecimento, as relações entre o biológico e o psicológico podem ser consideradas tão fascinantes quanto misteriosas.


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