SOFRIMENTO CORPORAL E (A AUSÊNCIA DE)
SIGNIFICADO SIMBÓLICO
Por Rodrigo
Sanches Peres
Diante do
exposto, é possível concluir que o acionamento dos mecanismos de produção dos
sintomas corporais apresentados por pacientes somáticos pode ser facilitado,
segundo Marty (1993), pela execução de investimentos libidinais arcaicos, ou,
conforme McDougall (1991), pela utilização de recursos defensivos primitivos.
Evidencia-se, assim, que há uma divergência importante entre as propostas
teóricas dos referidos autores. Todavia, ambos postulam que esses sujeitos se
caracterizam por uma marcante restrição da capacidade de elaboração psíquica.
Em função disso, tanto Marty quanto McDougall entendem as afecções orgânicas
potencializadas pelo pensamento operatório ou pela desafetação como
manifestações desprovidas de valor simbólico.
Como se sabe
desde o advento do inconsciente, a histeria possui um significado metafórico,
posto que a repressão — mecanismo de formação de sintomas do qual decorre — tem
uma natureza exclusivamente psíquica. Por essa razão, o modelo etiológico de tal
psicopatologia não é empregado por Marty e tampouco por McDougall na tentativa
de compreensão dos fatores emocionais associados ao adoecimento de pacientes
somáticos. Em última análise, ambos defendem que os sujeitos em questão são
vítimas de um fenômeno análogo àquele que, segundo Freud (1926/1996), engendra
o desenvolvimento das neuroses atuais, a saber: a transformação direta da
excitação em angústias automáticas.
A literatura
psicanalítica clássica preconiza que os sintomas físicos da neurose de angústia,
da neurastenia e da hipocondria, isto é, dos quadros clínicos que compõem a
referida classe nosográfica, têm como fator desencadeante a ação de processos
totalmente somáticos, de modo que não podem ser considerados uma expressão
simbólica. Tendo em vista que esses processos são causados por lacunas no
aparelho mental que favorecem a tradução corporal de uma história sem palavras,
Marty e McDougall propuseram que, em termos etiológicos, a somatização está
muito mais próxima da neurose atual do que da histeria. Com essa tese, a
propósito, revolucionaram a psicossomática e ampliaram os limites da
metapsicologia.
Os referidos
autores também assumem posições teóricas semelhantes ao afirmar que a expressão
corporal de conflitos emocionais se afigura, nas neuroses, como uma medida
eventual, funcional e dotada de pouco poder destrutivo. O funcionamento
operatório e a desafetação, em contraste, implicam, cada qual a seu modo, a
utilização recorrente do artifício em questão, o que favorece o surgimento de
enfermidades mais severas. Dessa maneira, ambos defendem que indivíduos que
possuem essas características são portadores de uma vulnerabilidade
psicossomática acentuada e não devem ser comparados com aqueles que apresentam
sintomas orgânicos ocasionais (Peres & Santos, no prelo).
Ressalte-se
ainda que, para Marty (1993), a utilização do termo "psicossomático"
como adjetivo remete ao antigo dualismo cartesiano. Seguindo esse raciocínio,
afirmar que uma dada doença é psicossomática encerra uma marcante falácia. McDougall
(1991) compartilha dessa opinião, o que torna patente que ambos concordam que a
unicidade mente-corpo faz do homem um ser psicossomático por definição. Não
obstante, os referidos autores reconhecem a multicausalidade do adoecimento e
não atribuem exclusivamente a determinantes psíquicos a eclosão de enfermidades
somáticas. Em virtude da complexidade de tal processo, contudo, inegavelmente
privilegiam a análise dos fatores emocionais associados a esse processo.
Essa opção
metodológica, cumpre assinalar, não se apresenta como um reducionismo
psicológico semelhante àquele forjado nos primórdios da psicossomática
psicanalítica, mas, sim, como um recorte necessário diante das múltiplas
facetas do fenômeno que se propõem analisar. Ou seja: é perfeitamente
compatível com o modelo biopsicossocial de compreensão do processo saúde-doença
vigente nos dias de hoje. Ademais, as proposições de Marty e McDougall não
excluem outras tentativas de explicação da gênese de enfermidades orgânicas —
sejam elas médicas, culturais, sociais ou de outro caráter — apoiadas em
elementos conceituais de raciocínio distintos (Peres, 2004).
Por fim, vale
destacar que Marty e McDougall estão de acordo que, nos casos em que a figura
materna não cumpre de forma apropriada a função de pára-excitação, os sinais
pré-verbais que o bebê emite não são inseridos em um código lingüístico. As
experiências que a criança vive não serão, portanto, devidamente simbolizadas e
seu corpo se apresentará como a via privilegiada de exteriorização de seus
conflitos, engendrando o desenvolvimento de somatizações. Em suma: para ambos,
o corpo anatômico se torna erógeno como resultado de um processo gradativo e
complexo que tem início nos primeiros meses de vida.
O presente
estudo aponta que a articulação entre as contribuições teóricas de Marty e
McDougall é um recurso pertinente para a elucidação do papel dos fatores
emocionais tanto no surgimento quanto no curso das doenças orgânicas.
Obviamente, porém, essa aproximação não deve ser executada de forma ingênua, já
que existem importantes incongruências entre o pensamento dos referidos
autores. É preciso reconhecer também que nenhum deles tem a pretensão de
esgotar o assunto. Todavia, suas proposições são dotadas de um valor
inquestionável, pois, no atual estágio do conhecimento, as relações entre o
biológico e o psicológico podem ser consideradas tão fascinantes quanto
misteriosas.
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